sexta-feira, 31 de agosto de 2012

o inverno começa quando um homem quiser

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parece que retorna o calor. em se fazendo rugado por mais tempo, o destemido levava-nos à desgraça do inverno antecipado. aos ataques de fome (o corpo pede mantimento), aos doces e ao chá (deus me livre de voltar a tomar chá em agosto). a verdade é que o corpo pede e nós temos de o manter com cuidados redobrados. mas o calor retorna em força. bendito seja. já me chegavam as meditações sobre uma frase que li por aí, quanto mais ter de matutar sobre os meus devaneios físicos. dizia assim:
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não confundir a fome, com a pressa de comer.
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e não é a mesma coisa, não. mas, com este tempo, já começava a duvidar.
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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

gerês [2]

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Paz
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Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Seren, dizer quem és
E quem sou.
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Miguel Torga
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domingo, 19 de agosto de 2012

gerês

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Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
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Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
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Miguel Torga
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sábado, 18 de agosto de 2012

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Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.
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E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
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Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida.
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Fernando Pessoa
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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

justos

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E Quando de Dia a Lonjura
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E quando de dia a lonjura dos montes
Azuis atrai a minha saudade,
E, de noite, as estrelas desmedidas
Esplendorosas ardem sobre a minha cabeça
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Todos os dias e todas as noites
Assim celebro o destino do homem:
Se ele a pensar alcançar sempre o justo,
Para sempre terá a beleza e a grandeza.
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Johann Wolfgang von Goethe, in "Poemas"
Tradução de Paulo Quintela

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terça-feira, 14 de agosto de 2012

grandes poemas com grandes títulos

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Quando sós à boleia do crepúsculo
                   [para o Fernando Guerreiro]


Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
- julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. Quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.

E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.

E isso que - talvez - nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).

Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.



Manuel de Freitas
[SIC]
poesia inédita portuguesa
Assírio & Alvim
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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

acreções

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Sem título
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O teu corpo como um livro
escrito em braille,
Nausica, deixei-o
no capítulo primeiro.

Inútil é pensar
nos parágrafos de luz
que prometias.
Feito está o erro.

Não é cego o amor:
é cego quem o troca
pelo hás de bem amado
da sua escuridão.

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José Manuel Silva
Ulisses já não mora aqui
& etc
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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

não é a idade que nos turva a vista, é o cansaço

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Não sei se são os trinta anos
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Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco, 
figurava o paraíso como um quarto vazio, 
onde o silêncio de um livro ressoava 
pela noite dentro. Protegia dos amigos 
minhas horas, dos irmãos, dos apelos 
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado ,
de trincheiras, distante de pracetas, 
acenos, convites pra jantar. 
O lamento era o meu hobby preferido. 

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.
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josé miguel silva
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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

agnes

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Amor
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A minha maneira de te amar é simples:
aperto-te contra mim
como se existisse um pouco de justiça no meu coração
e eu te a pudesse dar com o corpo.
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Quando mexo nos teus cabelos
algo de belo se forma entre as minhas mãos.
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E quase não sei mais nada. E só quero
estar contigo em paz e em paz
com um dever desconhecido
que às vezes pesa também no meu coração.
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Antonio Gamoneda
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roubado daqui
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